quarta-feira, 12 de março de 2014

Sem lugar

Sim, é claro que um dia quero ter minha própria biblioteca, para, de duas, uma: ou fazer com que meus filhos se apaixonem pelo mundo da leitura e adorem subir as prateleiras para agarrar um bom exemplar, ficando horas deitados no chão, apoiados pelos cotovelos, folheando as páginas; ou então eles terem aquele sentimento de "argh" estampado na cara, como quem não suporta a ideia de ler livros, mas um belo dia descobre, sempre por conta própria, os prazeres indescritíveis da leitura. Vejam, a consequência será uma só: meus filhos vão ler muitos livros. Eu e meu namorado costumamos brincar com a ideia de que ou eles irão amar ler ou simplesmente detestar. Ele é historiador, e eu vivo lhe dizendo que um bom historiador deve saber contar historinhas - ou estorinhas. Enquanto esse futuro não vem, eu vou me aventurando nas leituras, para saber o que indicar quando esse meu historiador particular (sim, ele quem irá contar as histórias para as crianças, oras!) for lhes narrar os incríveis enredos que lhes aguardam. Com direito à troca de vozes para cada personagem e muita, mas muita emoção na voz (pois não basta ser historiador, tem que ser intérprete).
Mas, sinceramente, há muitos livros ociosos (e olha que eu ainda nem tenho uma estante de livros digna), e eu preciso dar um jeito nessa situação. Justamente tendo falado muito desse problema (sim, é um verdadeiro problema - alguns me entendem, tenho certeza) com meu namorado ultimamente, hoje encontrei esse texto e estou pensando seriamente em aplicar o sistema, com a diferença de que não pretendo fazer tantas divisões. Só há dois futuros possíveis para meus livros: ou eles ficam comigo, ou vão para o Sebo (ou para a biblioteca municipal). 
E você, tem o mesmo problema? Então dá uma olhada no sistema que ele organizou!

Esta semana me deparei com um dos pesadelos dos viciados em livros: as prateleiras estavam de novo cheias. Voltei do México carregando uns 20 exemplares, somados aos brasileiros que tinham chegado por correio nos últimos meses e ao contrabando de livros de Mario Levrero trazidos por uma amiga uruguaia. O resultado era que havia livros espalhados por toda a casa em lugares inusitados. Um livro de contos de Kurt Vonnegut estava na gaveta das cuecas. O segundo volume das obras completas de Efrén Hernández, embaixo da cama. O romance da Socorro Acioli na cristaleira. Isso sem falar do caos em meu estúdio, onde não tenho prateleiras: só pilhas de livros nas duas mesas. Quando encontrei La historia de mis dientes, o novo romance da Valeria Luiselli, no cesto da roupa suja, achei que era momento de agir.
Fui até as prateleiras e comecei a cogitar quais livros tirar dali para deixar espaço para os novos. Os coitados escolhidos iriam, por enquanto, para umas caixas no quarto das tralhas. Porque o fato era que eu não ia comprar mais prateleiras neste momento (não perguntem por quê). Aí pensei na urgência de ter um critério para valorar os livros que merecem ficar com a gente pelo resto da vida.
Em 2003, quando saí do México para morar em Barcelona, tinha por volta de mil livros. Tive que tomar uma decisão. Decidi vender todos. Bom, não todos. Fiquei só com os autores mexicanos. Não foi por chauvinismo, foi por uma vaga ideia de que esses livros poderiam ser úteis no futuro (eu ia a Barcelona para fazer um doutorado em teoria literária). Os livros mexicanos seguiram em caixas para a casa de meus pais. Fiz uma lista do resto e repassei para os amigos e professores da faculdade de letras, que compraram a maioria. O que sobrou, vendi por quilo num sebo. Juro. Naquela época eu defendia de maneira radical a vida nômade (eu chamava de “vida portátil”). Quando saí do sebo sem o peso dos livros que eu tinha entesourado desde os 15 anos, me senti orgulhoso. Valente. Forte. Macho. Agora eu sei que só fui idiota. Ficaram lá os clássicos gregos e latinos, o século de ouro espanhol, todo o boom latino-americano, uma bela seleção de narradores americanos (especialmente a trindade Faulkner, Hemingway, Fitzgerald), os romancistas mais importantes em espanhol dos anos 90 e chega, não quero lembrar mais. Isto fez com que minha posterior biblioteca, que comecei a construir assim que desci do avião em Barcelona, tivesse buracos inacreditáveis, que aliás tem até hoje (não tenho um livro de Borges nela, nem de Cortázar). Anos depois, o método se revelou errado, não só pelo sofrimento da perda: quando revisei as caixas que deixei em casa de meus pais, encontrei bastante lixo.
Em 2011, quando mudei de Barcelona para o Brasil, fiz exatamente o contrário: trouxe todos os livros. Foi também uma idiotice, só sei agora, mas tudo bem, aquela perda ainda magoava. Não, desculpa. Nenhuma perda justifica fazer atravessar o Atlântico El koala asesino de Keneth Cook, por exemplo (o livro até que é legal, mas vem cá, não vou tocar de novo).
Então a pergunta é: quais são os requisitos que um livro deve cumprir para não ir parar no quarto das tralhas, o que é, na verdade, a antessala do sebo ou da doação, inclusive a do lixo? Ou, colocando de uma maneira dramática: quais são os livros que a gente tem que guardar para evitar o sofrimento futuro e quais são, falando a verdade, um simples estorvo?
Para facilitar a tarefa, eu criei um método científico, que chamei do “sistema jotapê para crise da prateleira”. É extremamente simples de calcular, só tem que seguir as seguintes instruções:
1. Se você já leu, qualifique o livro de 1 a 5
2. Se você ainda não leu: +5
3. Se você ainda não leu e tem o livro há mais de 3 anos: -10
4. Se você começou a ler e pensou em deixar mais pra frente: -5
5. Se você começou a ler e largou: -10
6. Se você releu o livro uma vez: +1
7. Se você releu o livro mais de uma vez: +5
8. Se é um livro de bolso: -1
9. Se está dedicado: +1
10. Se você conhece o autor pessoalmente e gosta dele: -1 (é para compensar a qualificação do livro, com certeza você não foi objetivo)
11. Se você conhece o autor pessoalmente e não gosta dele: +1 (mesma razão)
12. Se é um clássico: +1
13. Se é um raro: +1
14. Se não é nem clássico nem raro: -1
15. Se ganhou de presente: -1
16. Se depois de ler você comprou outro exemplar para dar de presente: +1
17. Se ganhou da sogra: -5
18. Se ganhou de um ex-namorado ou ex-namorada que você gostava muito: +5
19. Se você está namorando e o item 18 tem dedicatória do ex: -5
20. Se ganhou de um ex-namorado ou ex-namorada que você odeia: o que você está fazendo com essa porra de livro?
21. Se comprou durante uma viagem, num lugar lindo de morrer, com uma companhia maravilhosa: -5 (o livro não é tão bom assim)
22. Se está numa língua que na verdade você não entende bem: -5 (seja honesto)
23. Se você emprestou, não devolveram e comprou de novo: +5
24. Se você emprestou de novo, não devolveram de novo e comprou de novo de novo: você é idiota mesmo?
25. Se o autor é um amigo muito querido: -5
26. Se o autor é um amigo muito querido que visita sua casa com frequência: +20
Agora é só procurar o resultado:
Mais de 15: o livro fica na prateleira.
10-14: o livro vai para o quarto das tralhas até crise de espaço no quarto das tralhas.
5-9: o livro vai para o sebo.
0-5: o livro vai para doação.
Menos de zero: o livro vai para o lixo.
O sistema não se aplica para críticos literários e professores de literatura.
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Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e atualmente mora no Brasil. Festa no covil, seu romance de estreia, foi publicado em quinze países. Em setembro a Companhia das Letras publicou seu segundo romance, Se vivêssemos em um lugar normal. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. http://www.juanpablovillalobos.com/

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